Por Monique Mizrahi
Capoeira é liberdade, expressão, criação, improviso. É a canção, uma dança, uma arte marcial, uma filosofia para sobreviver. Contém respeito, dignidade e graça como uma conversa, um ritual, uma tradição e uma salvação. “Zum zum zum, capoeira salva um”.
Mulheres de todas classes têm lutado por muito tempo pelo seus direitos. Seja o direito de votar ou o direito de escolher, mulheres estão exigindo que suas vozes sejam ouvidas. Em sociedades antigas, as mulheres eram as parteiras e as curandeiras com grandes conhecimentos em remédios naturais. Haviam guerreiras e líderes militares femininas que possuíam um posto respeitado na sociedade, usando ambos a dureza masculina e o encanto feminino.
Com a revolução científica e a industrialização da religião, os homens passaram a ver as mulheres mais como um sexo frágil que precisava estar em casa do que como lutadoras. Entretanto, durante os últimos quarenta anos, mulheres tem batalhado para diminuir a imagem de ser a ‘sombra do homem’ e tem ganhado espaço e independência no que fazem, no que são e no que podem se transformar. Capoeiristas!
A História – Nasce a capoeira
A história da capoeira é vital para analisar a participação das mulheres em seu crescimento internacional. De 1538 a 1888, milhões de africanos foram arrancados brutalmente de suas famílias e amigos e levados pelos Portugueses ao sua colônia: Brasil. Estes escravos foram comprados, batizados, marcados com ferros, chicoteados, e vendidos. Os Portugueses separaram membros das mesmas tribos em uma tentativa de apagar seus heranças, línguas e culturas.
Devido às condições de vida não-humanas e das péssimas condições de trabalho, os escravos eram lucrativos e dispensáveis, morrendo geralmente dentro de três anos de sua compra. Enquanto os escravos trabalhavam na plantação, as mulheres permaneciam dentro da casa do senhor do engenho, trabalhando como serventes e ao mesmo tempo sendo tratadas como objetos sexuais.
Nas senzalas, os escravos batalhavam juntos em busca da liberdade usando suas raízes e orgulho africano. Muitas vezes, os escravos não falavam a mesma língua, mas a luta pela liberdade ecoava forte em todos eles. Lutavam bruscamente, fisicamente preparando-se para escapar e recuperar sua dignidade e humanidade. Quando um proprietário passava para dar uma olhada em suas mercadorias humanas, os escravos transformavam sua luta rapidamente numa dança, num ritual, ou cerimonia religiosa de uma forma inocente, disfarçando a sua verdadeira intenção.
Todos os escravos se davam conta de que, para fugir, necessitavam colher toda a sua força na união. No século XVII, um grupo de escravos fez exatamente isso. Se revoltaram contra seus mestres e, fugindo para o interior selvagem da mata, formavam os quilombos, comunidades de escravos que mantinham-se unidos com os seus ideais, os mais nobres e puros da resistência.
Nos quilombos, praticavam a capoeira: uma arte marcial improvisada que parecia uma uma dança “jogada” com muitos movimentos circulares onde dois adversários lutavam cercados por uma roda de pessoas que cantavam e tocavam música. (O termo usado era “lutar capoeira” até o século XX, quando passou a se dizer “jogar capoeira” e é assim até hoje).
Através da capoeira, os escravos desenvolveram reflexos rápidos e adquiriram uma grande capacidade de prever os ataques e intenções do seus agressores. Cada membro da comunidade precisava ter agilidade para defender os quilombos, tanto as mulheres como os homens, assim todos eles treinavam e lutavam capoeira. Ser forte não foi uma opção, Mestre Boa Gente confirmava, era “uma necessidade para sobreviver”.
Em 1888, o governo do Brasil aboliu a escravidão e logo depois a capoeira também. Em uma tentativa de apagar seu passado sangrento, o governo destruiu quase todos os documentos oficiais a respeito da escravidão. Os ex-escravos mudaram-se do campo para a cidade para ganhar suas vidas, mas não tinham oportunidades de trabalho.
Eles se juntavam em maltas , armando-se com os lâminas de barbear e com a capoeira. Essa luta era mortal e muitos capoeiristas foram perseguidos e presos pela polícia. onde acabavam na cadeia. Durante este período, as mulheres ficavam longe da capoeira. Os homens lutavam nas ruas enquanto as mulheres permaneciam dentro de casa, criando as crianças e sendo a dona de casa.
Os mestres da capoeira continuaram as tradições da sua querida arte. “Os mestres com certeza aceitavam a capoeira em geral, para todos que quisessem aprender sem discriminação. Mas naquela época existia esse preconceito de que mulher não podia participar de coisas que envolvesse riscos ou então eram chamadas de lésbicas… a sociedade tinha essa mentalidade,” explica o Contra-Mestre Jô, de Grupo Capoeira Brasil em Nova York.
A capoeira não ficou abolida por muito tempo por causa de um lendário homem com visão, o Mestre Bimba. Nascido homem livre em 1899, de um pai capoeirista, Bimba dedicou toda a sua vida para preservar a capoeira. Na década de 30, ele convenceu o governo fascista de Getúlio Vargas que a capoeira era uma herança nacional e que merecia ser preservada.
Com a capoeira, Bimba enfatizou as raízes culturais brasileiras, e não tanto as africanas. Por ser nacionalista, Vargas percebeu que a capoeira era uma identidade nacional e logo depois, legalizou a sua prática, somente se fosse praticada em um academia.
Daí Bimba abriu a primeira academia formal de capoeira em Salvador na Bahia, ensinando a capoeira aos pobres e ricos, e também às mulheres que poderiam de novo retornar ao jogo. Bimba introduziu suas sequências e regras muito rigorosas: deixar de fumar, praticar diariamente os exercícios fundamentais, evitar conversar durante o treino e manter o corpo relaxado. “A felicidade deles [dos mestres] era ver bons capoeiristas, tanto homens quanto mulheres, aprendendo a arte que eles criaram e desenvolveram,” Jô explica. Até hoje é o orgulho de todos os líderes de capoeira que ensinam a capoeira de corpo, alma e coração.
O presente: as mulheres na roda
Devido ao envolvimento da capoeira com revolução, conflitos e machismo, é possível que o Brasil tenha começado a aceitar as mulheres na capoeira mais tarde em relação aos outros países. “No Brasil diziam que a capoeira foi feita pra homem e não pra mulher; que lugar de mulher era no fogão”, confessa Jô, do Juazeiro, Bahia .
“Na minha turma, só tinha eu de mulher. Minha mãe quando viu a aula pela primeira vez não queria que eu voltasse mais. Com muita insistência, consegui. As coisas já mudaram hoje em dia”. Quando a Instrutora Guerreira expressou o seu desejo de começar capoeira em Minas Gerais, Brasil, sua mãe teve uma reação parecida. “Minha mãe não queria me deixar jogar porque era um esporte para homem, violento e perigoso. Guerreira prevaleceu e agora compartilha a sua paixão pela capoeira como instrutora do Grupo Quilombo do Queimado, em Seattle .
Nos últimos trinta anos, muitas capoeiristas brasileiras emigraram do Brasil para compartilhar sua capoeira, como fez Guerreira. Por conseqüência, as academias de capoeira foram estabelecidas nas cidades em todo o mundo, aberto para que todas as mulheres possam se inscrever, treinar, e jogar.
Naturalmente, a capoeira cresceu na popularidade entre mulheres e homens. “Capoeira é pra homem, menino, mulher” (diz uma canção do Mestre Pastinha). A gente começa a treinar em todas as idades, incluindo idosas, como exemplo uma que começou recentemente na casa dos sessenta anos e Jô, que começou a capoeira aos oito anos da idade. “Tem esperança para todos na capoeira, para todo os tipos de corpos,” exclamou Mestra Suelly, a primeira mestra na América, da Capoeira Arts em Berkeley , Califórnia, “todos tem que encontrar seu próprio jogo”.
Há muito mais mulheres com altas graduações na capoeira agora do que antes. As graduações principais na capoeira são Aluno, Instrutor, Professor, Contra-Mestre, e Mestre. Num recente batizado da Capoeira Batuque (cerimônia onde os novos alunos são iniciados e os mais antigos são reconhecidos pelo progresso e recebam cordas coloridas), mestres do Brasil, América, Austrália, e Japão notaram que existem por volta de 50% homens e 50% mulheres em suas academias.
Entretanto, as figuras são diferentes quando você olha os estudantes em níveis superiores. “É mais raro para que uma mulher receba uma graduação elevada, ” explica a Professora Marrom de Grupo Mandinga de San Diego . “Mulheres estão sempre lutando por seus direitos. Eu vejo todo o tempo.” Jô evitava crítica machistas dos mestres: “Dou o mesmo suor, amor, e valor como eles na capoeira. [É preciso] paciência, muito treinamento … disciplina, e um bom fundamento [para chegar numa alta graduação].”
“Mulheres sangram pela capoeira, e não estou falando sobre menstruação, estou falando sobre o coração e a alma, o suor, a coragem e a energia, às vezes mais do que homens, e são pouco reconhecidas pela sua dedicação e amor do jogo e do tradição!”, revelou a Instrutora Marrom.
O futuro – Suar, jogar, respeitar-se e unir-se
“Há menos mulheres nas graduações mais elevadas da capoeira. Por quê?, ” pergunta o Professor Girafa, do Capoeira Batuque. Seja porque homens são geneticamente melhores capoeiristas? Segundo as quatro capoeiristas entrevistadas, a resposta é “Não.” Marrom explica que os homens são “mais dominantes quando se trata de força, habilidade. Capoeira é baseada na força de cada indivíduo”. Mesmo que algumas mulheres tenham menos força na parte superior do corpo que homens, “realmente depende da pessoa,” declara Suelly.
É natural sentirmos menos capaz do que um homem devido à massa muscular do seu corpo, mas no diálogo entre duas pessoas na roda, mulheres podem sobressair-se se forem corajosas, confiantes, e positivas. Embora, Jô admita: “Me sinto mais à vontade e confiante jogando com homem. Acho que é porque cresci assim, no meio dos homens o tempo todo. A mulher só precisa ser mais confiante… ter a mesma dedicação. Toda vez que a mulher se depara com um novo movimento, elas precisam dedicar-se ainda mais para poder se livrar dos bloqueios”, e o fazem.
Mas é verdade que muitos fatores podem interferir no treinamento da mulher na capoeira. “Quando fico doente ou quando tenho uma sobrecarga de trabalho, mas é muito raro eu parar de praticar capoeira”, Marrom revela. “Tem que ser algo muito, mas muito importante. Capoeira é algo que eu faço com muita seriedade e que amo com muita paixão”. Além das distrações diárias, as mulheres tendem a descobrir a capoeira depois dos vinte anos, frequentemente criando também suas próprias famílias logo depois.
Dar a luz a um filho pode interromper um treinamento da capoeira de uma mulher para sempre. Mas não é necessariamente a regra. Jô recentemente deu a luz a um filho e jogou capoeira até duas semanas antes do parto. E ainda voltou a ensinar na academia depois de apenas um mês! Com uma enorme dedicação, as capoeiristas podem priorizar as suas vidas para estabelecer uma prática regular.
Embora as mulheres tragam seus próprios estilos e energias dinâmicas à capoeira, também podem ser extremamente competitivas e intensas, esquecendo o elemento do malandragem no jogo. “Vejo que as mulheres perdem seu controle e tornam-se emocionais”, observa Marrom. “Quando ficam emocionadas na roda, não desempenham bem. Se pressionam dizendo: Não posso perder”. Isso significa que as mulheres frequentemente tornam-se sérias demais, sentindo que precisam provar algo.
Mas isto não ajuda na roda. Jô expressa que “quando a competição entre as mulheres acabar, serão mais unidas. Guerreira está de acordo e recomenda que as mulheres devem “ser mais simples” com o seu jogo na capoeira, e Suelly incentiva as mulheres a “continuar jogando a capoeira e expressando a sua história pessoal. Contribua e jogue muito. Ser afetado pela capoeira e afeta-la”. Jô adiciona “nunca perca o seu feminismo!”.
Respeite e seja respeitada
Isso inclui em respeitar a música da capoeira, elemento intrínseco em qualquer jogo de capoeira. Ladainhas são cantadas para honrar os mestres do passados e são acompanhados por um único berimbau (um instrumento feito de um pedaço de madeira de beriba, uma cabaça, e um arame), originado na África. Depois que a ladainha é cantada, dois capoeiristas são sinalizados para entrar na roda para jogar.
As canções continuam num formato de chamado e resposta, e dali o pandeiro e o atabaque começam a tocar também. Os cantores comentam sobre o jogo, especialmente nas situações de muita emoção, perigo, e/ou malícia. “A música da capoeira conta histórias e lembra povos, épocas, e lugares. É essencial,” diz Marrom. Suelly adiciona: “as mulheres têm muito que contribuir musicalmente, embora isso ainda não aconteceu”. Parece um chamado para que mais capoeiristas mulheres comecem a cantar uma ladainha e tocar o pandeiro!
Então, qual é o futuro para mulheres na capoeira? Alguns são mais otimistas. “O futuro da capoeira para as mulheres é promissor com espaço para crescimento e desenvolvimento, com mais aceitação e integridade”, diz Marrom. “As mulheres continuarão a crescer muito e serão mais integradas na capoeira”, Suelly adiciona. Outras são um pouco mais reservadas. Jô recomenda que as mulheres sejam mais “femininas e sorriam mais com uma fera, guerreira dentro de si. Tem que usar a inteligência sem perder a malícia da capoeira. A vida tem seus altos e baixos e, como na capoeira também, cabe a você se respeitar e se dedicar, ter objetivo, ser humildade e ser persistente, que consiga o que quer, treine com vontade de treinar”.
Desejando compartilhar da seguinte sabedoria com todos as mulheres na capoeira, Marrom declara, “as mulheres não devem esquecer de ser mulheres. Jogue como uma mulher e lembrem-se de ser feminina porque é isso que faz as mulheres na capoeira realmente bonitas. Não somos grandes monstros; nem mesmo homens. Nós somos fortes e femininas.”Iêee viva a mulher na capoeira, camará!!!
Axé e dendê!
* Monique Mizrahi é uma capoeirista chamada Risadinha.
** Todas as capoeiristas recebem um apelido no seu primeiro batizado. Historicamente, as capoeiristas tiveram muitos apelidos para disfarçar sua verdadeira identidade]. Gostaríamos de agradecer a participação de Dendê, Ginasta, Morango, Suave, Geneviève, Mestre Boa Gente, Girafa, Trança, e Concha do Mar. O grupo de Monique Capoeira Batuque, e agradecimentos especiais a Mestranda Suelly, Contra-Mestre Jô, e as instrutoras Marrom e Guerreira pela colaboração neste artigo.
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