Por Alejandro Gedeon 

Cachacas 4

Desde os anos 2000 a cachaça tornou-se amplamente apreciada em muitos outros países

Eis como começou meu caso com uma bebida que não só me trouxe tais momentos memoráveis, como também cativou tanto a minha atenção, que acabei fazendo um documentário a seu respeito. As pessoas me perguntam por que eu faria um documentário sobre “A Cachaça”. A resposta é que existe muito a seu respeito, muitos segredo guardados dentro de uma garrafa. Era 1989, e eu estudava no Cal Arts quando vi essa garrafa escura vinda do Brasil, com um incrível rótulo art déco.

Abri-la foi doloroso, porque era como abrir um tesouro que só se poderia encontrar em um navio naufragado. Depois de derramar o líquido dourado em um copo, trouxe-o perto de minhas narinas para poder aspirar o aroma, e então a magia aconteceu, logo nas primeiras gotas que caíram em minha boca. Fui possuído pelo espírito da cana-de-açúcar, e então voltaram muitas de minhas recordações da infância. Senti novamente o cheiro de cavalo, de bosta de vaca e, é claro, os pedaços de cana que eu costumava mastigar com tal paixão, que terminava coberto de mosquitos tentando sugar o suco que estava espalhado em todo o meu rosto. Desde então, eu a amo e a aprecio mais de que a qualquer outra bebida no mundo. Qual o seu nome? Cachaça.

A maioria dos meus amigos brasileiros que conheci em Los Angeles não bebem cachaça, e isso foi uma das primeiras coisas que me chamou a atenção. Por que essa bebida sagrada que tanto amo, não caiu no gosto dos meus amigos brasileiros? Tinha de ter algo errado com ela que eu simplesmente não podia perceber. Quando fui ao Rio de Janeiro em 1995, visitei um lugar que, é claro, tornou-se um dos meus favoritos: A “Academia da Cachaça”, nas vizinhanças do Leblon. Lá, encontrei um menu que oferecia nada menos que 25 tipos de cachaça. Então as experimentei todas, e comecei a identificar quais eram de minha preferência. Porém, mais tarde, notei que a maioria das pessoas que frequentavam a Academia bebia cerveja em vez de cachaça, e percebi então que alguma coisa realmente estava errada como essa bebida, e que definitivamente ela não era para mim.

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“Cachaça… forte, devastadora, deliciosa e gostosa como um grande amor”

Para tornar as coisas piores, quando fui ao supermercado local para comprar algumas de minhas cachaças favoritas, para minha surpresa, o que foi que encontrei? Nenhuma delas. As únicas cachaças disponíveis eram um par de marcas industriais bem baratas e que costumam ser usadas nas famosas “Caipirinhas”, o coquetel nacional brasileiro. Estas mesmas marcas eram, ao mesmo tempo, as únicas disponíveis nos restaurantes do Rio.

Mas eu não desisti, e continuei procurando pela minha “caninha” (um dos muitos apelidos da cachaça), até que encontrei um barzinho e loja de licor chamado “A Casa da Cachaça” no centro do Rio, perto da Lapa, que oferecia mais de 100 variedades com os rótulos mais bonitos que eu já vi. O proprietário, Sr. Oswaldo Costa, me disse que viajava todo final de semana para Minhas Gerais, e ia de alambique a alambique para comprar as melhores cachaças do Brasil, direto dos produtores. Ele me explicou também a diferença entre uma cachaça feita em casa e outra industrial. Ele disse que existem mais de 8000 destilarias só no Estado de Minas. O Sr. Oswaldo definitivamente abriu o mundo da cachaça para mim.

Depois que eu encontrei Oswaldo, decidi cair na estrada. Em 2001 voltei ao Rio, e de lá fui ao “Festival da Cachaça”, na cidade colonial de Paraty, a apenas duas horas de carro indo para o sul. Yes! Um festival de cachaça que acontece em uma das principais regiões que produziam essa bebida sagrada, lá por volta de 1500, durante a colonização do Brasil. Na Idade de Ouro da cachaça, havia em torno de 200 destilarias ao longo da costa da cidade, e inclusive “Paraty” chegou a ser sinônimo de cachaça.

Hoje, só restaram 5 destilarias, mas as marcas de Paraty devem ser consideradas como algumas das melhores do país.Ele me fez perceber que a classe média brasileira e, é claro, as elites, não conheciam cachaça senão como bebida de pobre, bebida dos “cachaceiros e pinguços”. O que? Eles têm até uma palavra pejorativa para os bebedores de cachaça? Uau! Achei que já estava pertencendo a esse grupo! Essa coisa toda não era nada mais nada menos que um caso de total discriminação e preconceito contra um dos mais preciosos produtos brasileiros.

Encontrei depois vários museus da cachaça e coleções privadas, como aquela de Paulo Monteiro na pequena cidade de Caeté, Minas Gerais, onde ele mantém uma coleção de aproximadamente 6000 cachaças, incluindo aquela famosa, com o Pelé no rótulo. “Existem apenas 5 ou 6 ainda, porque na época, Pelé já era um astro do futebol e não gostava de se ver associado a uma bebida alcoólica como a cachaça. Ele tentou então tirar de mercado essas cachaças”, disse-me Paulo, enquanto mostrava os rótulos mais fantásticos que alguém poderia ver.

“Cachaça… forte, devastadora, deliciosa e gozosa como um grande amor”, diz o escritor e jornalista Marcelo Câmara. Ele foi fundador em 1994 da “Confraria do Copo Furado”, um grupo informal de amantes da cachaça no Rio, dedicado a experimentar, apreciar e avaliar cachaças de todo o Brasil. “Nosso slogan era: Juntos beberemos! Sozinhos também!” Eles tinham São Benedito, um santo negro, como protetor, e o famoso músico e compositor de bossa nova, Tom Jobim, como patrono.

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“Eles usam nomes como ‘cachaceiro’ e ‘pinguço’ para os bebedores de cachaça”

Marcelo explica: “A forma como avaliamos cachaças é a seguinte: ‘cachaças do paraíso’ (as melhores), ‘cachaças do altar’ (as boas), ‘cachaças do balcão’ (boas para preparar coquetéis) e ‘cachaças das elites’ (as piores). Por quê? Bem, talvez porque certas elites brasileiras desprezam a cultura brasileira”. E acrescenta: “Eles usam nomes como ‘cachaceiro’ e ‘pinguço’ para os bebedores de cachaça. Então, por que eles não usam termos como ‘whiskeiro’ ou ‘vodkeiro’ para os bebedores de whisky e vodka? Eu me considero um ‘cachaçólogo’, um ‘pingófilo’, e um devotado provador de cachaça”.

O ponto alto de minha viagem foi a 11 milhas a norte do que é agora considerada a “capital mundial da cachaça”, a cidade de Salinas, de terras vermelhas e céus azuis, na região norte de Minas Gerais. Lá encontrei, escondido em seu rancho, a Lenda, o Mito, o Homem de Princípios e o Produtor da “Havana” – a mais cara cachaça do Brasil, de valor simplesmente inestimável. Seu nome: Anísio Santiago.

Um homem extremamente modesto em seus 80 anos (parecia uns dez anos menos), Anísio criou lentamente um mundo por si mesmo. Um mundo que fez dele um mito, e de sua bebida a mais cara de todas. Algo estranho e muito particular acontece para que um motorista de caminhão venha a se tornar um produtor de cachaça. Seu desprezo pelo dinheiro era tal, que um dia decidiu usar o próprio produto para pagar as contas.

Anísio desafiou as regras do jogo e voltou ao tempo do escambo. Ele só fez uma exceção: venderia duas garrafas por dia aos clientes que fossem ao seu encontro. Vestindo uma camisa rasgada e fumando um cigarro barato, Anísio me ofereceu um copo da sua bebida favorita, a cerveja Brahma. Eu gostaria de tê-lo filmado para meu documentário, mas só pude apreciar a excelente conversa depois que ele me disse que não deixava que ninguém tirasse fotos dele, e não gostava de dar entrevistas a ninguém: mais humilde, impossível.

Ele me deixou vagar por seu rancho, conferir sua produção de cachaça, e em seguida me mostrou o maior tesouro de sua vida: uma impecável pick up Chevy 47. Depois de passar a tarde com esse homem maravilhoso, agradeci sua gentileza e já ia me retirar, quando ele olhou para mim um tanto surpreso, e pediu que esperasse: ele foi lá dentro e voltou como uma sacola de papel. Colocou duas garrafas de “Havana” dentro dela e disse: “Uma é presente, a outra você tem que comprar”. Aquela garrafa custou 45 reais (15 dólares), mas era sair de sua casa, e já estariam alcançando 150 reais (em torno de 50 dólares) cada. Em uma loja especializada se vende a 280 reais (mais ou menos 100 dólares) cada.Quando eu o perguntei por que ele produzia só 5000 litros por ano (8300 garrafas), respondeu: “Você não pode ter sede de dinheiro, é isso que está destruindo o mundo”.

Anísio faleceu há dois anos, mas seu legado continua, e ele será lembrado por todos nós que o encontramos como um homem maior do que a vida.

No ano passado voltei ao Brasil para terminar o documentário, e como uma boa notícia, percebi que algumas coisas tinham mudado para melhor. Alguns supermercados melhores, como o “Zona Sul” (que serve a bairros como Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca) agora têm cerca de 50 variedades das melhores cachaças do Brasil, e alguns dos melhores restaurantes e bares boêmios como Mangue Seco, Giuseppe Grill, Sobrenatural e outros, também oferecem grandes marcas. Isso não quer dizer que a cachaça tenha sido amplamente aceita, de forma alguma.

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Cachaça é feita a partir da cana-de-açúcar

As classes média e alta brasileiras estão apenas começando a aprender como se aprecia sua bebida nacional, e uma das razões para isso é que, durante os últimos cinco anos (desde 2000), a cachaça tornou-se amplamente apreciada em muitos outros países, especialmente a Alemanha, Japão, Africa do Sul, França e Estados Unidos. A cachaça e a já famosa caipirinha têm feito um grande sucesso. Não é de se espantar que as elites brasileiras pensem: “Bem, deve ser ‘chique’ beber cachaça, já que os europeus e americanos gostam tanto…”.

Nome: Cachaça.
Apelido: Pinga, Caninha, Imaculada e mais uns cem.
Nacionalidade: Brasileira
Produção: 1.5 bilhões de litros por ano.
Consumo: Terceira bebida destilada mais consumida no mundo.
A cachaça mais cara: “Havana”, 100 dólares.
As mais populares: Pitú e Caninha 51
Boas alternativas: Autêntica e Boca Loca

Convido então, a todos, para juntarem-se a mim e provar o “Espírito Brasileiro” – prometo que vocês vão sair dançando! Tin tin, Saúde!!!

* Alejandro Gedeon é um cineasta Colombiano que foi casado com co-proprietaria do festival Animamundi do Rio. Ele atualmente (2018) vive em Cali, Colombia, e viveu varios anos em Los Angeles, California. 

 

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