Por Kátia Moraes
Os pernambucanos Lenine e Lula Queiroga vêm me beliscando desde 1982 quando moravam no Rio e faziam shows juntos. Eles têm várias coisas em comum. Amam Recife, são violonistas e compositores e misturam ritmos regionais (como o punch percussivo do manguebeat) com a MPB e a parafernália eletrônica. Jamari França, crítico musical do Jornal do Brasil, chama o som de Lula Queiroga de “technordestino”. Não sei qual é a diferença entre bass’n’drum, acid house, pop/lounge, house, nu jazz e chill out. O que me importa é se o som me bate. Se me arrepia, me intriga, me faz pensar, dançar, ou seja, me belisca.
Nos anos 80 assisti o show deles com a banda “Raposa do século XXI” no Teatro Ipanema. Um show de arrepiar. Eles começavam a noite entrando pelo público cantando e tocando percussão e dali pra frente era só arraso. Suas personalidades se completavam. Lenine, um leão do norte e Lula com suas melodias encantadoras. Eu diria que Alceu Valença foi um dos primeiros a levar a mistura de rock com batidas nordestinas pro Rio e de lá pro Brasil e Lenine e Lula adicionaram outras variantes e multiplicaram os caminhos musicais utilizando a maquinaria eletrônica que cria imagens universais.
Lenine mudou para o Rio pela segunda vez em 1980. Ivan Santos (compositor da Paraíba) encontrou ele na estrada em Alagoas e acabaram morando juntos na tão falada “Casa 9” em Botafogo. Ivan e Lenine já se conheciam e haviam feito alguns shows juntos no Nordeste. Ivan diz que a “Casa 9” se tornou um ponto artístico, um albergue que recebia artistas de Recife e da Paraíba, como o escritor e letrista Bráulio Tavares, Alex Madureira e os compositores Zé Rocha, Fuba, Pedro Osmar e Lula Queiroga.
Melodia de baião na voz
“A gente era simpático e ao mesmo tempo tinha aquela coisa árida e brusca do Nordeste. Isso atraía muito as pessoas (enquanto o lado “fino” e charmoso do carioca nos atraía). Na música se dava o mesmo. Lenine abria a boca e vinha aquela melodia de baião na voz, aquele clima regional de que as pessoas normalmente tinham preconceito. Mas bastava pegar no violão e o que se ouvia eram acordes extremamente modernos e ritmos tão quebrados que ninguém podia imaginar que alguém pudesse tocá-los e ao mesmo tempo ainda cantar. E Lenine fazia isso dançando”, me contou Ivan via e-mail.
Lula Queiroga gravou “Baque Solto” com Lenine em 1983 e um compacto em 1984. Depois disso, Lula voltou pra Recife onde ficou quase 2 décadas sem gravar. Trabalhou com publicidade e criou seu próprio estúdio e produtora chamada “Luni”. Mas as parcerias com os amigos nunca cessaram e a prova disso são as composições que Lenine gravou e que fizeram um super sucesso como: “A Ponte” e “Dois Olhos Negros”. Lula retornou com os festivais Rec Beat e Abril Pró Rock na capital pernambucana. No ano 2000, ele lançou pela Luni o CD “Aboiando a Vaca Mecânica”, com os convidados especiais Arnaldo Antunes, Jorge Mautner, Pedro Luís, Silvério Pessoa, Chico César, Lenine e outros.
“O Lula é um grande cronista, um exímio letrista. O seu disco está sensacional, estou batendo os tambores para que tudo dê certo”, disse Lenine na época do lançamento. Lula recebeu o prêmio Sharp, com “A ponte”, parceria com Lenine, e em 2001, ele recebeu o prêmio nacional de melhor compositor do ano, dado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, a mais importante do País. O novo disco de Lula, “Azul Invisível Vermelho Cruel” saiu em 2004. “Nesse disco novo a parte eletrônica tá mais enxuta e a primeira inclinação foi de criar as levadas e a percussão primeiro. As letras são meio surrealistas, sem laivo de romanticismo barato. Um mosaico, um painel figurativo”, disse Lula numa entrevista na Internet.
“Na sinagoga do Brooklin
Na tribo do curumim
Quem tem fé se levanta
E quem não tem canta assim:
I love the money”
Lenine, Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, foi assim chamado em homenagem ao Lênin. Apesar de ser apaixonado por rock, o disco “Clube da Esquina” de Milton Nascimento foi um “divisor de águas” na sua vida. “Na época, era tecnicamente impecável, ousado e belo. Mas foi vendo Gilberto Gil no palco que caiu a ficha que a música era o que eu realmente queria”.
“Sou nordestino, com toda a carga de mistura que a região tem. Holandês na cabeça, black power no pé”. Esse pernambucano louro, alto e de olhos verdes e que é quase carioca (“Metade da minha vida eu passei no Rio, por isso carrego comigo uma forte sensação de despatriamento. Sou do mundo”), abriu o show que eu fiz com Mário Costa na Sala Funarte nos anos 80. Ele entrava com o violão e não tinha pra ninguém depois disso. Foi nessa época que ouvi pela primeira vez a esotérica “Mais Além”, música dele com Lula Queiroga, Ivan Santos e Bráulio Tavares.
“O homem sobre a areia como era no início
Roçando duas pedras, uma em cada mão
Descobre a fagulha
Que incendeia o paraíso
E imaginou que havia inventado Deus
É mais, é mais, é mais, é mais, é mais além”
Bráulio Tavares contou como eles compõem juntos: “Eu e Lenine gostamos, cada qual devido a uma formação diferente, de compor partindo de uma idéia visual ou dramática. A música, muitas vezes, é concebida de início como se fosse uma história em quadrinhos, um curta-metragem, um conto de ficção científica. Partir de uma idéia fora do universo da música ajuda a abrir janelas mentais.” Lenine é taxado de neotropicalista devido à mistura de estilos musicais com samplers e tudo que lhe inspira. “Sou completamente mão (e cabeça) aberta no que diz respeito à musica e todo o processo de fazê-la. Quanto ao estilo, isso é algo que eu não procuro. Acredito sim na tecnologia como ferramenta a serviço da criação.”
Depois de 5 discos no Brasil (“Baque Solto” com Lula Queiroga, “Olho de Peixe” com Marcos Suzano, “O Dia em que Faremos Contato”, “Na Pressão” e “Falange Canibal”), Lenine gravou o CD e primeiro DVD “InCité” no Cite de la Musique em Paris. Com ele estão a baixista cubana Yusa, também responsável pelos vocais, e o percussionista argentino, Ramiro Musotto. “Eu fiquei surpreso com a qualidade do projeto “InCité”, disse o premiado engenheiro de som Moogie Canazio.
“Acho que o que eu faço de melhor não é compor, não é tocar, arranjar, cantar, produzir. É intuir”, disse Lenine. “O que faço não é música. Música é só o fio condutor. O que faço é o aprofundamento da relação humana. Aliás, é a única coisa que sei fazer”.
* Esse artigo foi originalmente escrito em 2003 para a revista bilingue Soul Brasil.
* Katia Moraes é cantora, compositora e artista carioca. Ela é colaboradora de longa data da revista Soul Brasil e vive em Los Angeles desde 1990. Para saber mais sobre ela, visite: www.katiamoraes.com
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