Por Gabriel Woll
É uma manhã fria e cinzenta de junho – pleno inverno carioca – e o grupo de mais ou menos trinta adolescentes sentados no chão duro, treme em seus casacos azuis quase sem cor. Eles parecem emburrados com seus olhos mirados para baixo e seus braços cruzados. Os garotos acabaram de ser retirados de suas celas para esse pátio vazio com paredes grafitadas no Instituto Padre Severino, um dos mais duros e notórios reformatórios de reabilitação de menores infratores da Ilha do Governador, Rio de Janeiro.
Esses garotos estão no Padre Severino por terem cometidos crimes violentos e por vezes chocantes. Quase todos moram em alguma favela carioca, que “adornam” a cidade inteira. Eles estão acostumados às rígidas regras da administração penitenciária e às freqüentes provocações dos guardas; eles escutam sérios aos dois jovens apenas um pouco mais velhos que eles, que estão logo à frente usando jeans de marca e tênis Nike.
Os jovens nas roupas de grife são LG e Hermano, integrantes do AfroReggae, um grupo de Hip-Hop internacionalmente aclamado. Eles também moram em favelas e mesmo com todo o dinheiro e sucesso ainda preferem trabalhar em suas comunidades. Apesar dos inúmeros compromissos, como ensaios, shows e algumas visitas ocasionais até Brasília, para encontrarem-se com o ministro da Cultura Gilberto Gil, Hermano e LG vieram até o Padre Severino para ministrar um workshop sobre percussão que durará três meses. Eles chegam não somente como celebridades ou professores, mas como modelos de vida e esperança.
Em 29 de agosto de 1993, uma tragédia atingiu Vigário Geral em cheio. A gigantesca favela localizada na já pobre Zona Norte há tempos já estava acostumada a históricos de violência, mas os fatos ocorridos naquele dia foram diferentes de tudo que já se viu por lá. Em uma suposta retaliação pelo assassinato de um colega os “Cavalos Corredores”, um grupo de oficiais de polícia fora de serviço invadiu a favela matando vinte e uma pessoas, entre elas crianças e idosos.
José Junior, um líder comunitário que trabalhava em Vigário Geral, tinha começado o Grupo Cultural AfroReggae (GCAR) como uma pequena ONG no início daquele ano, mas foi o massacre ocorrido em agosto que lhe mostrou a necessidade, e lhe deu o incentivo, de transformar a pequena organização artística em uma grande força social. Júnior selecionou um grupo reduzido de adolescentes – muitos com um passado de ligação com gangues – todos haviam perdido algum amigo ou parente graças à ação dos “Cavalos Corredores” – e iniciou um intenso programa de educação artística para eles. Entre as matérias dadas havia capoeira, dança afro-brasileira, hip-hop e percussão.
A iniciativa educacional de Junior deu certo e o AfroReggae rapidamente se expandiu para poder atender a um cada vez mais jovens de Vigário geral. Com o aumento do número de participantes cresceu também o número de serviços pelo GCAR. Hoje o grupo é composto por centenas de jovens que além das aulas participam de diversos grupos de teatro, música, artes visuais e companhias de dança.
No epicentro do GCAR está a banda Afroreggae, um grupo de hip-hop cujos membros incluem vários dos adolescentes que começaram com Junior ainda em 1993. É quase impossível entrar no ritmo de trabalho deles. Além dos shows freqüentes e da ajuda constante dada à comunidade, o grupo mantém uma agenda intensa com apresentações pela Europa. América Latina e Oriente Médio. Em 2004, o AfroReggae se apresentou nos EUA pela primeira vez no Carnegie Hall como convidados de Caetano Veloso, que fez as apresentações e, mais tarde, os vocais de apoio na versão de “Luz de Tieta” feita pelo grupo, um de seus maiores sucessos.
José Junior e o AfroReggae têm um rígido código de conduta que seus participantes devem seguir, sejam eles membros do grupo ou participantes de workshops. Os jovens associados ao AfroReggae, não podem fumar, beber ou usar drogas, bem como possuir armas de fogo. Também não podem estar associados a qualquer tipo de manifestação violenta.
Os membros do AfroReggae agem como embaixadores culturais contra a violência, falando em locais díspares entre si, de reformatórios juvenis a simpósios acadêmicos, encorajando os jovens cariocas, especialmente os de baixa renda, a encontrarem uma oportunidade fora do mundo do crime e da violência. Mais importante, o AfroReggae lhes dá essas oportunidades e continua a prover ainda mais: o grupo recentemente se expandiu para incluir projetos em outras seis favelas. Os membros da banda dizem que o AfroReggae foi o único grupo a ter colocado seus pés em todas as favelas do Rio de Janeiro.
A arte sempre foi um importante instrumento de progresso social no Rio de Janeiro. Nas últimas décadas, em especial depois do fim dos vinte e um anos de ditadura militar. A partir de 1985, diversos programas floresceram por toda a cidade, usando o teatro, o cinema e a música para enfrentar diretamente os problemas sociais e para mostrar modelos pacíficos de expressão, auto-afirmação e de vida em comunidade. O Afroreggae está na dianteira desses novos movimentos. Ele é uma das maiores Organizações Não Governamentais do Rio de Janeiro e uma das mais queridas e visíveis do Brasil.
As apresentações da banda se tornaram uma das peças fundamentais do “Criança Esperança”, o programa realizado anualmente pela Rede Globo para arrecadar fundos e elevar a conscientização sobre os problemas enfrentados pelas crianças brasileiras. “Conexões Urbanas”, o espetáculo gratuito feito mensalmente pelo grupo, invariavelmente é um dos eventos chaves no calendário musical carioca, contando sempre com a presença de nomes importantes da música brasileira como O Rappa, MV Bill e Gabriel o Pensador.
A influência do AfroReggae não é sentida apenas localmente. “Favela’s Rising”, o documentário realizado ano passado que retratou a vida do principal vocalista do AfroReggae Anderson de Sá ganhou prêmios em diversos festivais cinematográficos dos EUA, Reino Unido e Brasil.
No primeiro grupo de workshop do dia, surge um problema. As populações carcerárias e de reformatórios no Rio de Janeiro são quase sempre separadas por suas afiliações com determinada gangue e os jovens internos no grupo foram todos presos por estarem ligados ao Terceiro Comando, um dos mais famosos cartéis do tráfico carioca. O AfroReggae, por sua vez, tem base em Vigário Geral, área dominada pelos rivais do “Comando Vermelho”.
LG e Hermano explicam que, como músicos, eles não estão afiliados e nem respondem às leis de nenhuma gangue. “A nossa guerra é outra”, diz LG, que completa dizendo que eles estão lutando contra a violência, mas não com nenhum grupo de pessoas em específico. Com aspereza, Hermano fala aos garotos que o AfroReggae trabalha nas comunidades sem importar-se com quais cartéis estejam no comando e diz ainda que o trabalho deles: “é uma missão de paz”. Ele chama a atenção para o fato do grupo trabalhar em Parada de Lucas, onde a facção que lidera o tráfico de lá está em guerra com Vigário Geral desde 1985. O envolvimento da banda marcou a primeira vez em vinte anos onde jovens de Vigário e de Parada estiveram lado a lado buscando o interesse de paz e progresso social.
A linguagem corporal dos detentos muda consideravelmente quando LG e Hermano explicam a diferença entre músicos e membros de gangues. Antes, os garotos se mostravam displicentes, agora todos estão levantados olhando uns aos outros. Finalmente, eles começam a olhar nos olhos de LG e Hermano. Eles fazem perguntas que são respondidas pacientemente pelos músicos. Os dois explicam que quando adolescentes, eles também tiveram amigos presos por terem cometido atos violentos com suas gangues, mas que o AfroReggae lhes mostrou que havia uma alternativa.
O slogan do AfroReggae: “Da Favela ao Mundo”, não apenas escancara a improvável ascensão do grupo à fama, mas também deixa claro a fé de que coisas melhores e mais fortes do que a violência possam vir das favelas cariocas. Através de sua música, o AfroReggae demonstra toda a energia criativa, talento e esperança que emana das favelas do Rio. A mensagem parece estar sendo passada: nessa fria manhã de junho, trinta garotos que meia hora atrás estavam sentados mostrando-se desinteressados e dispersos, estão de pé, conversando e dando risadas com LG e Hermano e esperando ansiosamente pela sua vez deles de tocar os tambores.
* Gabriel Woll é um educador Americano que viveu por alguns meses no Rio de Janeiro e desenvolveu um trabalho social artístico junto o movimento Afro Reggae. Ele vive em São Francisco, fala Português e adora o Brasil – www.afroreggae.com.br
Facebook Comments