“Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, marcou o cinema brasileiro no início do século 21. O longa-metragem de 2002 retrata o crescimento do crime organizado na Cidade de Deus, uma favela que começou a ser construída nos anos 60 e se tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro no começo dos anos 1980.
Para contar a trajetória deste lugar, o filme narra a vida de diversos personagens e eventos que vão sendo entrelaçados no decorrer da trama, tudo pelo ponto de vista do narrador, Buscapé, um menino que cresceu em um ambiente muito violento, porém encontra chances de não ser fisgado pela vida do crime.
Personagem do filme que ficou mundialmente famoso, o ex-traficante Aílton Batata, de 61 anos, se entristece ao constatar que a violência ainda envolve a favela, mesmo décadas após protagonizar a guerra que abalou o local nos anos 70 e 80. Ele estava preso quando descobriu que era personagem do filme de Fernando Meirelles, no qual foi retratado como o personagem Sandro Cenoura, vivido por Matheus Nachtergaele. Agora, quinze anos após deixar a prisão, Batata conta sua versão sobre o confronto.
Lançado pela editora FGV, o livro “Cidade de Deus — A História de Ailton Batata, o sobrevivente” foi escrito pela antropóloga Alba Zaluar e pelo psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, a partir de 60 horas de entrevistas com o ex-traficante.
Confira na íntegra a entrevista que o portal Extra fez com o ex-traficante:
- Como foi sua infância?
Minha família é oriunda do Morro do Urubu, em Pilares. A gente morava em um lugar alto e o morro não tinha água, então era preciso subir e descer com baldes. Minha vida era carregar água, ir à escola e soltar pipas. Cheguei na Cidade de Deus em 67, com 9 anos. Era tudo muito deserto, cheio de sítios e a gente gostava de pegar fruta dentro dos matos. Nessa época, o crime era muito leve e camuflado. Até quem fumava maconha fazia isso escondido. Ninguém via gente andando armada.
- Com que idade entrou para o crime?
Eu tinha 16 anos e recebi um convite para assaltar. O pessoal tinha aquela tara de assaltar kombi de cigarros. Fui mais por causa da farra, porque eu já trabalhava naquela época. Era servente numa fábrica na Penha. Ironicamente, um dia fui assaltado e o ladrão mordeu meu dedo com força, pegando a ponta do nervo. Demorou para sarar e precisei largar o emprego. Continuei fazendo aquelas besteiras e acabei indo parar umas três ou quatro vezes no Padre Severino (instituto que acolhia jovens infratores).
- Já havia tráfico de drogas?
O tráfico de drogas era pequeno dentro da Cidade de Deus. E naquela época todo mundo que quisesse vender podia vender. Conforme os anos foram passando, foi se comprando quantidades maiores. Já em 72, 73, o tráfico começou a ser centralizado nas mãos de poucos. Começaram a surgir disputas. Eu assumi um ponto aqui dentro e tinha os caras lá dos prédios (no conjunto habitacional erguido no bairro na década de 60). Durante um tempo, as coisas ficaram tranquilas.
- Quando começou a guerra?
Quando surgiu o Zé Pequeno. Ele era um moleque bem pequeno e andava sempre com o parceiro dele, o Bené, que trabalhava numa padaria. Eles tinham mania de ir para a cidade roubar. Mas quando todo mundo começou a ver que o dinheiro estava no tráfico, o Zé Pequeno começou a querer tomar tudo para si. Ele já não respeitava ninguém. Zé Pequeno começou a matar as pessoas que tinham ponto no tráfico. Como todos eram amigos, ninguém esperava que ele fizesse isso. Eu tinha 18 para 19 anos. Estava trabalhando como auxiliar de serviços gerais em uma universidade e resolvi largar e voltar para tomar conta do meu ponto.
- Vocês se enfrentaram?
Quando eu percebi que o Zé Pequeno só matava amigos, logo vi que eu seria o próximo, porque a gente se conhecia há anos. Por isso, quando ele vinha com o bando para a minha área eu já colocava dois revólveres debaixo do braço. Se ele atentasse contra a minha vida, sabia que eu iria atentar contra a dele também. Quando ele ia atirar em alguém, já chegava com o dente trincado. Pelo jeito dele falar, você já percebia. Houve casos de um balear o outro. Eu fui baleado no pescoço, na cabeça, no braço e no tórax. Acabou que ele não conseguiu me apanhar e nem eu a ele.
- Quem venceu a guerra?
Ninguém. A guerra durou alguns anos e acabou por falta de soldados. No fim, já tinha morrido todo mundo, tanto de um lado como de outro. O Zé Pequeno foi preso e fugiu da Frei Caneca. Quando voltou para tomar o ponto dos prédios, foi morto pela outra geração que já tinha assumido o tráfico. Eu decidi largar aquilo tudo. Passei a vez para outro moleque e voltei a trabalhar como motorista de táxi. Mas ficou uma dívida para trás. Fui condenado por homicídio e depois surgiu um processo de extorsão. Então fui para a cadeia em dezembro de 1989.
- Como era a vida na cadeia?
Na prisão perdi 15 anos da minha vida. Mas procurei não me envolver em nada lá dentro da cadeia. No sistema, o pessoal mexia com drogas e com o crime organizado que começava naquela época. Tinham duas facções, a Falange Vermelha (embrião do Comando Vermelho) e a Falange Jacaré (que teria dado origem ao Terceiro Comando). Muitos morrem dentro da cadeia mesmo, em guerra de quadrilha. Eu contei com apoio da minha família e me isolei de tudo. Quando estava cumprindo pena no regime semi-aberto, recebi a proposta para trabalhar na prefeitura e aceitei na hora.
- O que achou do filme “Cidade de Deus”?
O filme é muito mentiroso. As pessoas existiram, mas as coisas não aconteceram daquela forma. A história é baseada em um livro, cujo autor entrevistou fez entrevistas com moradores para dizer que era baseado em fatos reais. Mas ele só entrevistou curiosos. Então não é um retrato verdadeiro. Um exemplo é aquele bando de crianças no tráfico. Aqui não tinha isso. Outra coisa é que os caras andavam bem vestidos, cheio de ouros, não saíam de chinelo e bermuda para assaltar.
- Qual foi sua reação ao ver o Cenoura?
Eu estava na cadeia quando vi o trailer do filme. Falei: “Que porra de Cenoura é esse? Quem tinha guerra com o Zé Pequeno era eu”. Ninguém tinha falado nada comigo. Quando saí, encontrei um cara que era envolvido no filme e ele me contou que, devido a eu ser o único sobrevivente, o nome foi trocado. Cheguei a abrir um processo contra o filme, mas houve várias manobras, o advogado que me assistia desapareceu e eu acabei ficando sem testemunha no processo. Perdi a causa e nunca recebi nada.
- Você acha que o tráfico vai acabar um dia?
O tráfico não acaba, não. É muito dinheiro que rola. Vejo falarem em legalizar a maconha, mas o problema é a cocaína, o crack e as outras drogas.
- Como é sua vida hoje?
O cara que está no tráfico vegeta. Não tem liberdade para nada. Vive sempre assustado, com medo de ser reconhecido e acabar preso. Agora eu ando de cabeça erguida. Trabalho há 15 anos e posso voltar para casa andando, livre.
Após lançar o livro e de realizar a entrevista, Ailton Batata não fez outras aparições relevantes na mídia. Em 2017, o Extra divulgou que ele trabalhava como funcionário da Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro. Na época em que o livro foi lançado, Batata tinha 62 anos. Dessa forma, passados 7 anos [esse artigo foi atualizado em 2024], Ailton tem 69 anos.
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