Por Aymara Limma
O que parecia impossível aconteceu, um milagre, como disse a atriz Cate Blanchett, a presidente do júri do festival. Acredito que o amor ao cinema fez com que todos os obstáculos que vivemos este momento fossem superados e a 77ª edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza foi realizada com sucesso.
Parecia impossível, mas com disciplina, responsabilidade e união de todos, a organização do festival conseguiu. Os diretores dos principais festivais de cinema da Europa: Thierry Frémaux (Cannes Film Festival), Lili Hinstin (Locarno Film Festival), José Luis Rebordinos (San Sabastián International Film Festival), Vanja Kaludjerčić (International Rotterdam Film Festival), Karel Och (International FIlm Festival Karlovy Vary), Tricia Tuttle (BFI London Film Festival) e Carlo Chatrian (Berlin International Film Festival), se juntaram com Alberto Barbera (diretor do Venice Film Festival) e foram apoiar a mostra de Veneza.
Temos que ressaltar que as mulheres realmente reinaram nesta edição, um avanço gigantesco em comparação ao ano passado. O Festival Internacional de Cinema de Veneza, ou simplesmente Festival de Veneza, é realizado na ilha do Lido em Veneza (Itália) desde 1932. É o festival de cinema mais antigo do mundo, sendo assim um dos eventos internacionais de cinema mais prestigiados, por ele passam os profissionais mais importantes da indústria cinematográfica.
O Festival que sempre ditou as tendências cinematográfica e indicou filmes ao Oscar, este ano não fará diferente, foi o primeiro festival do mundo a ser realizado em tempos de covid 19, fazendo novamente história, não só por abrir as portas para o público mas também por vários outros acontecimentos.
Devido ao covid 19 “La Biennale di Venezia”, organizadora do Festival, impôs vários protocolos de segurança, como obrigatório, o uso de máscaras por toda a área do festival. O distanciamento social começou a ser imposto com os lugares marcados para evitar as tradicionais filas nas mais de 10 salas de projeções com seus os lugares reduzidos pela metade, ao término de cada sessão uma equipe entrava para fazer a limpeza da sala. E para evitar o aglomeração das pessoas foi construída uma barreira ao redor do tapete vermelho, por trás dos fotógrafos, para impedir que o público ficasse ali assistindo o show.
A segurança de todos era muito importante, todos os membros do júri e convidados tiveram que fazer o teste de covid-19, assim como todos os maquiadores e cabelereiros que arrumavam os participantes para o tapete vermelho. A atriz Cate Blanchett brilhou como presidente do júri principal, foi a sua primeira vez neste papel em Veneza, ela já vem presidindo o júri do Festival de Cannes.
Com o bloqueio da entrada dos americanos na Europa por conta do covid-19, este ano não tivemos todo aquele time “A” de celebridades, mas pudemos contar com a presença do ator americano Matt Dillon como júri do festival, porque ele tem estado em Roma com a sua namorada de longa data, a atriz italiana Roberta Mastrominchele. Em todo caso, estiveram presentes grandes nomes da indústria cinematográfica europeia.
Já na abertura do festival, a atriz Inglesa Tilda Swinton foi premiada pela sua carreira, ela que já tem no currículo 162 indicações e 69 prêmios incluindo um Oscar. A diretora chinesa Ann Hui também foi premiada com um Golden Lion Life Achievement, eu pedi para ela conselhos para jovens filmmakers e ela disse: “o importante é você saber o que quer”. Bingo!
Há anos falamos de igualdade de gêneros na indústria cinematográfica, este ano, muito diferentemente de 2019, dos dezoito filmes em competição, oito foram dirigidos por mulheres. E sem grandes filmes dos estúdios de Hollywood, o público que estava presente pôde apreciar uma incrível seleção de produções de todas as partes do mundo, incluindo vários filmes italianos belíssimos.
Nesta edição tivemos dois filmes brasileiros selecionados, “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil, no qual Caetano Veloso conta o que viveu quando foi preso injustamente na época da ditadura militar. Já “Gravidade VR”, de Fabito Rychter e Amir Admoni, é um filme de realidade virtual. Vale lembrar que ano passado vencemos dois prêmios de melhor filme, um com “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, de Bárbara Paz, e o outro prêmio com o filme de realidade virtual “A Linha”, de Ricardo Laganaro.
Dos vários filmes selecionados, alguns concorrendo pelo Leão de Ouro outros a outros prêmios, fizeram desta mostra uma forma de reflexão sobre a vida e o momento atual que estamos vivendo. Alguns tirados de peças teatrais como o filme de Pedro Almodóvar feito durante o lockdown, “The human voice”, uma adaptação da peça do Francês, Jean Cocteau. Almodóvar brilhou com o seu filme de 30 minutos, o seu primeiro trabalho em inglês em que ele dirige a sua nova favorita, a atriz inglesa Tilda Swinton. “The human voice” – o drama de uma mulher ao telefone com o seu ex amante, o qual está para se casar com outra. Obra que já teve uma versão interpretada por Ingrid Bergman em 1966.
Regina King, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, agora como diretora lança o seu primeiro filme que deve caminha de Veneza direto para o Oscar. “One night in Miami”, é baseado na peça teatral de Kemp Powers, o filme fala de quatro americanos afro africanos reunidos em um quarto de hotel em 1964 depois que Cassius Clay, com 22 anos, move o mundo do boxe com uma vitória sobre o campeão peso-pesado Sonny Liston. Clay, que mais tarde muda seu nome para Muhammad Ali, se junta a Malcolm X, Jim Brown e Sam Cooke para discutir as desigualdades raciais e formas de usar a fama para juntos tornar o mundo um lugar melhor.
Já com “Le sorelle Macaluso”, peça teatral de sucesso na Itália escrita por Emma Dante, a mesma decide fazer um filme adaptando o seu texto para o cinema, com várias mudanças ela conta o drama de uma família de cinco irmãs e de como elas sobrevivem depois de um acidente que transforma a vida de todas para sempre.
Dos filmes Biográficos, eu adorei “The Duke”, um longa delicioso de Roger Michell director the “Nothing Hill”, a estilo Robin Hood. O filme fala sobre o roubo do quadro de Goya da National Gallery em Londres. Com Jim Broadbent, Helen Mirren e Mathew Goode, é diversão garantida. Em competição para o Leão de Ouro, o filme Miss Marx, sobre Eleonor, a filha mais nova de Karl Marx, Miss Marx dirigido pela diretora italiana Susanna Nicchiarelli venceu com “Nico 1988” o prêmio Horizons de melhor filme, no Festival de Veneza de 2017.
Um outro filme que eu amei, muito inspirador, é “Salvatore: Shoemaker of Dreams”, um documentário do italiano Luca Guadagnino, que conta a trajetória do brilhante Salvatore Ferragamo. Creio que muitos são apaixonados pelos sapatos da marca Salvatore Ferragamo, não sei se muitos sabem que ele criou o seu império do zero, criando sapatos para filmes em Hollywood. Uma história linda e muito bem contada.
E com tantos lindos filmes, alguns dos grandes os vencedores foram:
A portuguesa Ana Rocha de Souza venceu dois prêmios com o seu primeiro filme “Listen”. Muito profundo, conta o drama de uma família portuguesa que emigrada no Reino Unido, perde a guarda de seus três filhos menores para o serviço social, por suspeita de maus tratos aos filhos.
Um dos filmes que foi mais aplaudidos foi o filme iraniano “Sun Children”, de Majid Majidi, que conta a história de crianças que trabalham para sobreviver. É um filme impressionante. O diretor, que costuma trabalhar com atores e não atores, fez teste com mais de 4.000 meninos até achar o ator principal, Rouhollah Zamani, que ganhou o prêmio Marcello Mastrorianni de melhor ator ou atriz jovem. Infelizmente ele testou positivo para covid-19 e não pôde ir ao festival. Mas eu encontrei a jovem e talentosa atriz que trabalhou com ele. Realmente um belíssimo trabalho.
O filme Japonês “Wife of the Spy”, de Kiyoshi Kurosawa, rendeu a ele o prêmio de melhor diretor, vale a pena conferir o filme. A atriz Inglesa Vanessa Kirby, a princess Margaret da série da Netflix “The Crown”, estava em dois filmes em competição: “Pieces of a Woman”, do diretor Hungaro Kornél Mundruczó, e “The World to come”, da diretora Mona Fastvold, e merecidamente acabou vencendo o prêmio de melhor atriz.
Já o prêmio de melhor ator foi para Pierfrancesco Favino com o filme italiano “Padrenostro”, que conta um drama vivido pelo diretor Cláudio Noce. Pierfrancesco esteve no Brasil filmando com Maria Fernanda Cândido “O Traidor”, que estreou em Cannes no ano passado, e conta a história do mafioso que morou no Brasil e casou com uma Brasileira, Tommaso Buscetta.
O filme documentário “Notturno”, de Gianfranco Rosi, acabou não levando nenhum prêmio, Cate Blanchett disse que grande parte dos votos eram unânimes e gostariam de ter premiado Rosi, mas faltaram prêmios. Quem sabe o festival não cria uma outra categoria no próximo ano.
Na minha opinião, o filme mais impactante foi o filme “New order” (Nova ordem), escrito pelo diretor mexicano Michel Franco há anos, mas retrata um drama assustador sobre classes sociais. Franco me disse que escreveu uma história fictícia sem nenhuma intenção alarmista, mas que poderia acontecer em países como México e o Brasil. Esperamos que não aconteça em lugar nenhum, que esse drama fique somente retratado neste filme. New Order venceu o segundo prêmio mais importante do festival, o Leão de Prata.
O grande filme vencedor do Leão de Ouro foi um filme Americano e na verdade temos uma vencedora, a diretora Chinesa, Chloé Zhao, com o filme “Nomadland”. A atriz americana vencedora de duas estatuetas do Oscar Frances McDormand, brilhantemente nos transporta para a vida da sua personagem, uma mulher com os seus 60 anos, que perde tudo na grande recessão, e em sua van viaja como nômade em busca de trabalho. Chloé Zhao que escreveu, dirigiu e editou o seu filme. E diz que não fez um filme politizado, mas ele não deixa de mostrar uma realidade um tanto difícil e que poucos conhecem. Um filme que emociona e provavelmente andará direto pro Oscar.
Eu diria que, para muitos, cinema é vida!
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