Por Laís Oliveira
Você sabe quem foi Gérson Nunes? Aquele que recebeu uma “lei” em seu nome. O meio-campista Gérson ficou célebre não apenas por ter sido uma das maiores estrelas do tricampeonato brasileiro da década de 1970, mas por ter formulado, na propaganda do cigarro Vila Rica veiculada anos depois, aquela que viria a ser conhecida como lei de Gérson: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?”.
Na peça publicitária de 1976, o craque fala sobre as vantagens do cigarro e pronuncia a seguinte frase: “É gostoso, suave e não irrita a garganta”. E continua: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro?”. Depois de propagandear o cigarro e falar sobre o quanto o produto era bom, Gérson dá um sorrisinho malandro e solta a última frase da propaganda: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”. Desta forma, sintetizou de uma vez só o jeitinho brasileiro de fazer o errado parecer certo.
Basicamente, a mentalidade à qual o jogador se referia funciona assim: se algo pode dar errado ou for errado perante uma lei, regra ou boa conduta, não tem problema, pois mesmo que der errado, o brasileiro dá um jeitinho de fazer parecer certo. E a fama do “jeitinho brasileiro” ficou mundialmente conhecida, seja essa uma característica cultural boa ou ruim.
Esse “jeitinho” é utilizado de diversas maneiras no cotidiano de boa parte das pessoas do Brasil. Seja para burlar regras, furar filas, andar pelo acostamento, não devolver o troco que recebe errado, desviar de blitz policiais, se sair melhor que a pessoa ao lado – mesmo que esta seja de sua família ou um amigo próximo. Tudo parece valer à pena para conseguir vantagem.
Ninguém defende um comportamento antiético ou ilegal com base no enunciado da lei de Gérson. Se ela existe, é em primeiro lugar reflexo da nossa realidade. O jeitinho não surgiu a partir do que o jogador disse, mas sim de centenas de anos, lá atrás quando o Brasil foi “descoberto” – ou seria “invadido”? Nossa cultura é reflexo da forma como o sistema foi historicamente organizado, desde a colonização até a república.
De acordo com a cientista política da Universidade de Campinas (Unicamp), Rachel Meneguello, para a grande maioria dos brasileiros, a busca de atalhos, soluções facilitadas ou vantagens diversas fazem parte do cotidiano das pessoas. Mas, afinal, o que leva o brasileiro a cometer deslizes de conduta? Por que ele condena a grande corrupção e pratica pequenos delitos?
Para a psicanalista Inez Lemos, o descobrimento do Brasil fez parte do projeto de modernidade. “No século 15, os europeus estavam em busca de riquezas e preciosidades, do luxo e do supérfluo. Contudo, somos filhos de uma relação de interesses – o português engravidava a índia para se aproximar dos que aqui viviam e detinham informações. Ser moderno é substituir o ser pelo ter, cumprimos a profecia mercantilista da acumulação primitiva do capital e isso se reflete no comportamento do cotidiano do povo”, afirma.
Ainda segundo Inez, trazendo para a realidade de algumas décadas atrás até o momento atual do Brasil, o contato com a mídia que expõe um cotidiano promíscuo e corrupto de políticos, funcionários públicos e cidadãos, todos envolvidos em atos ilícitos, provoca na cultura brasileira o desejo de desforra, de querer participar da festa. “É a revolta do filho excluído, rejeitado. A corrupção metaforiza a atuação do filho ressentido com o pai que o lesa e o faz passar ao ato, em vez de contestar e cobrar seus direitos”, revela.
Mas se o jeitinho brasileiro já está tão enraizado no cotidiano da sociedade, há jeito de mudar essa realidade e fama? Sim. Não há segredo, nem mistério. No cerne de uma sociedade justa e igualitária está a educação do povo, seja em qualquer lugar do mundo. O primeiro ambiente de aprendizagem humana é na família. Nela nasce o respeito para com os de dentro de casa e os de fora. Valores como bondade, transparência e verdade devem ser ensinados desde a infância.
A partir de então é preciso ter consciência que sim, essa realidade cultural existe, e que o ideal é ninguém reproduzi-la. Para mudar esse traço característico de parte da população brasileira é preciso, também, debater o tema, refletindo e deliberando o que é certo e o que é errado. Por fim, é necessário chegar à prática – na qual se abre mão de vantagens pessoais em detrimento de valores e se pratica o que foi acordado, trabalhando em prol do bem comum. Somente com consciência e pensamento fraternal é possível se desvencilhar do jeitinho brasileiro.
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